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    Música e ancestralidade: a revolução das origens Yawanawá

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    Jamile Alves, Portal Projeta – “E aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio”.

    Na composição mítica e um tanto profética de Um índio – quinta faixa do álbum Bicho, de 1977 (Ouça a faixa) -, Caetano Veloso não chega a revelar qual é o segredo escondido bem na nossa frente. Esse papel ficaria a cargo de um nativo, detentor da soma das melhores características de Muhammad Ali, Peri, Bruce Lee e dos filhos de Gandhi.

    Pela canção, em um momento de ares apocalípticos, ele descerá de uma estrela colorida para contar a verdade quando a última nação indígena for exterminada. Em um Brasil de progresso a qualquer custo em que indígenas perdem a soberania recém-conquistada de seus territórios, não seria absurdo imaginar que um dos últimos suspiros do Tropicalismo seja, de fato, um tipo de presságio.

    Isso é bom, na verdade, se levarmos em consideração as perspectivas sempre futuras do que é um “presságio”, de fato. Logo, o desfecho ainda pode ser remodelado. A cegueira coletiva que nos impede de ver o evidente não precisa seguir como um padrão social e muito menos ser curada exclusivamente sob extermínio de mais povos indígenas.

    Pelos menos por enquanto, ainda há muitos “pontos equidistantes entre o Atlântico e o Pacífico” a guardar o tal segredo. Alguns desses lugares estão escondidos acima dos barrancos que acompanham os meandros do Rio Gregório, no sudoeste do Acre, coração da Amazônia brasileira. O nome desse afluente do Rio Juruá, que banha o município de Tarauacá, também dá nome à Terra Indígena onde habitam importantes guardiões do óbvio oculto: os Yawanawá.

    Foto: Reprodução/ Cooperativa Agro-extrativista Yawanawá

    Povo da queixada

    Chegar onde moram, um local de área total de 92.859 hectares, é difícil e demorado. É preciso trocar de diferentes meios de transporte ao longo do percurso, passando pela esburacada BR-364 e, depois, navegar em barco a motor rio acima por cerca de oito horas, a depender do nível das águas.

    Foto: Reprodução/ Cooperativa Agro-extrativista Yawanawá

    De acordo com seus ancestrais, os Yawanawá sempre ocuparam as cabeceiras do Rio Gregório ao longo de toda a sua existência, diferente de outros grupos amazônicos que hoje estão espalhados por diferentes regiões do mapa. Essa aliança com a terra e entre si justifica a alcunha de “povo da queixada” (yawa/queixada; nawa/gente).

    Assim como os animais dessa espécie, os Yawanawá sempre são vistos em bando. Nunca “um índio” como dissera Caetano, mas cerca de um mil preservados em plenos corpos físicos, em todos sólidos, gases, líquidos, átomos, palavras, cores, em gestos, cheiros, sombras, em luzes e, incontestavelmente, em sons magníficos.

    ‘Kanarô’

    ‘Kanarô’ é uma arara de penas amarelas, na língua Yawanawá Foto: LuizTodeschi

    “Kanarô” é uma espécie de pássaro que para os Yawanawá significa muita saudade, saudade demais, daquelas de doer, fazer chorar. Contam os seus ancestrais que, certa vez, na divisão dos continentes e dos povos pela Terra, o primeiro homem Yawanawá, filho do Criador, sentou na beira do rio, onde muito ao longe via um rastro verde de floresta.

    O homem passou a visitar o local com frequência. Ele acreditava que, lá do outro lado, onde a vista mal alcançava, morava também uma parte da sua família, uma parte sua e de sua história.

    Em um desses dias ele percebeu a presença de um kanarô, uma arara de penas amarelas que sempre voava cedo por ali, comia frutas nos arredores e voltava para o outro lado nos fins de tarde.

    O homem então se conectou espiritualmente ao pássaro. Colocou nele toda a sua saudade e amor pela família distante e entoou: “Kanarô, tere te in te, kanarô, tere te in te”.

    Quem adentra hoje a Terra Indígena do Rio Gregório ainda ouve, em tantas outras vozes, o canto do primeiro homem da criação daquele povo – hoje mesmo, 19 de abril de 2019.

    Mas não é preciso ir tão longe para ouvi-lo. “Kanarô” é um dos cantos mais famosos da tribo e está disponível em serviços de streaming como o Youtube, Spotify e Deezer e até em um CD gravado por jovens Yawanawá contemplado com o Prêmio Funarte de Música Brasileira.

    Essa e outras canções do povo viajam ainda por centros ayahuasqueiros, eventos de organizações não governamentais e congressos voltados à temática ambiental. Até o DJ Alok já esteve por lá e levou o som da aldeia para raves – e documentou toda a experiência, olha isso.

    Mas, como é sabido por muitos, nem tudo são flores na história indígena pós-colonização. Os hinos que exaltam os animais, as águas, o ar e os espíritos da floresta nem sempre foram modulados em alto e bom tom.

    O contato

    Os Yawanawá estão há um século em contato com a sociedade ocidental, ou com os nawa, como chamam o homem branco na língua nativa. Esse meio tempo foi marcado, sobretudo, pelo genocídio e escravidão do povo indígena local, cometido nos “tempos áureos” da exploração da borracha na Amazônia.

    Durante mais de três décadas, os Yawanawás foram forçados a conviver com todo tipo de abuso praticado pelos patrões seringalistas e, mais tarde, por missionários da Missão Novas Tribos do Brasil, empenhados em evangelizar os indígenas. Por uns, foram explorados. Pelos outros, foram submetidos à prática da religião cristã, que considerava suas crenças espirituais manifestações do diabo.

    Nesse período, muitos dos rituais, danças, expressões culturais e espirituais foram deixados para trás. Os Yawanawás sofreram ainda com a dispersão das famílias por conta dos casamentos interétnicos, que levaram muitos nativos para fora da aldeia.

    Demarcação, sim

    Os queixadas viram seu povo ficar menos numeroso até que a história tomou outros rumos a partir de 1977. O governo brasileiro demarcou a área da Terra Indígena e, seis anos depois, começaram a ser expulsos todos os não indígenas do território, que era dos Yawanawá desde os tempos imemoriais e, agora, também era seu por direito.

    Foto: Reprodução/Yawanawá.org

    Os anos de exploração e luta deram lugar a uma nova batalha, tão importante quanto a garantia das suas terras. Distribuídos nas comunidades Nova Esperança, Mutum, Escondido, Tibúrnico, Amparo, Matrinchã, Sete Estrelas e Yawanarí, os Yawanawás tinham que combater agora o esquecimento forçado de suas raízes para fazer renascer sua cultura, sua língua e seus conhecimentos tradicionais guardados na memória ancestral dos indígenas mais velhos.

    Um impulso para essa missão foi a conquista do direito à educação escolar diferenciada, com formação também distinta de professores Yawanawá. Os pajés e líderes espirituais também se empenharam em ensinar aos jovens da aldeia a educação tradicional do povo.

    Um importante reforço veio com a fundação da Cooperativa Yawanawá (COOPYAWA). Administrada atualmente por sua diretoria e pelo cacique Biraci Brasil – conhecido como Nixiwaka em sua língua tradicional – a organização viabilizou um importante projeto de etno-turismo, o Festival Yawa.

    Cacique Biraci Brasil Foto: Yawanawá.org

    Celebrando tradições

    “Kanarô” e todos os cantos, a comida, as danças, brincadeiras e a espiritualidade Yawanawá são relembrados ao longo de uma semana inteira de festival, que acontece desde 2002 religiosamente no mês de outubro, na aldeia Nova Esperança.

    Desde então, há 16 anos, a tribo congrega membros de várias aldeias Yawanawá, indígenas de outras etnias e brancos visitantes para celebrar as tradições mantidas por seus antepassados.

    Nas épocas dos plantios e da piracema, como é chamado o período de reprodução dos peixes de água doce, a tribo fazia uma festa bastante parecida registrada como mariri. O conjunto de cantos e danças circulares presentes nas celebrações do mariri são chamados saiti, momento em que homens e mulheres se juntam em um grande círculo no terreiro da aldeia e cantam segundo o andamento entoado pelo líder da roda.

    Resgate da tradição

    Nas primeiras edições do Festival Yawa, não havia nos cantos nada além das vozes. Elas eram vez ou outra acompanhadas por flautas, mas não cotidianamente e nem tocadas por qualquer um da tribo. As músicas eram acompanhadas pura e simplesmente pela sonoridade das vozes masculinas e femininas, combinadas com as batidas dos pés nos movimentos de dança. Com a revitalização cultural e a necessidade de acolher as novas gerações Yawanawá, canções como “Kanarô” ganharam novas melodias.

    A ideia foi do filho do cacique Biraci Brasil, o cantor Shaneihu Yawanawa. O contato com os nawa o levou a estudar na cidade aos 11 anos, quando ganhou seu primeiro violão. Foi só ver o processo de resgate das origens do seu povo que ele vislumbrou no instrumento todo o seu potencial de incentivar entre os mais jovens o aprendizado da língua Yawanawá.

    E não deu outra. Em um momento emblemático em uma das edições do festival, Biraci puxou: “Kanarô, tere te in te, kanarô, tere te in te”. Shaneihu foi lá, acrescentou o arranjo feito por ele no violão e impressionou os presentes com a beleza incorporada no tradicional canto que deu nome, inclusive, ao seu primeiro álbum musical.

    Shaneihu Yawanawá atua como cantor Brasil à fora, representando as tradições do seu povo (Foto: Reprodução)

    Efervescência cultural

    O antropólogo Virgílio Bomfim Neto, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tem um trabalho importante direcionado à expressividade musical dos Yawanawá. Ele comenta que as novas versões dos cantos ficaram bonitas e tiveram boa recepção, mas não de todo mundo.

    “Eu, como pesquisador e antropólogo, perguntava para o pajé, para o cacique: ‘O que você acha da entrada de novos instrumentos no canto tradicional?’. Alguns sons mudam a pronúncia das palavras com o jeito de entoar o canto e algumas pessoas fizeram críticas por conta disso. Fato é que colocar os instrumentos desperta o interesse dos jovens que querem aprender a tocar e já gostam dos cantos tradicionais. Outros povos do Acre também estão se inspirando nisso para revitalizar sua cultura a exemplo dos Yawanawá. Podemos dizer que está acontecendo uma verdadeira efervescência cultural no estado do Acre”, pontuou.

    O cacique Biraci considera que a melodia muda, de fato, mas a essência, a nata do canto, só fica mais bonita. Hoje, entre os Yawanawá não faltam violões e gente que saiba tocar. Não há aulas formais nas aldeias, então um indígena ensina o outro, ou aprende sozinho e acaba criando sua própria versão para não ficar fora das rodas de saiti.

    O que antes era restrito aos velhos da aldeia, agora acontece principalmente através dos mais jovens, em qualquer hora e lugar onde tiver um violão esperando para ser tocado.

    Bomfim acredita que essa “efervescência cultural” introduzida pela tribo está ligada não só à música, mas principalmente à sua associação com os rituais de uni, como os Yawanawá chamam as cerimônias de ayahuasca.

    Não, não é uma droga, seu moço

    A ayahuasca é produzida a partir de duas plantas nativas da floresta amazônica: o cipó mariri e folhas do arbusto chacrona ou rainha. Para fazer o uni, o índio passa por uma preparação de dias. Se casado, não pode manter relações. Se comeu algum doce durante o período, nem oferece as mãos para a produção.

    Foto:Reprodução/ @shuhu.yawanawa

    As restrições impostas são uma forma de dedicação ao propósito da bebida: causar “mirações” que levem a pessoa que a ingeri-la visualizar com clareza seus impedimentos, suas falhas e hábitos de atitude, a fim de reconectá-las à sua aspiração divina na Terra.

    As músicas instrumentalizadas também encontraram terreno fértil por aqui, como explica o antropólogo e parceiro de pesquisa de Virgílio, Miguel Bittencourt.

    “A gente vê que a música tem vários papéis sociais, a sociabilidade com os não indígenas e entre eles mesmos e, também, no uso do uni, em que a música pode ser pensada como um dispositivo de indução, sendo essas práticas curativas e de bem-estar com certo mecanismo ritual para trazer determinada sensorialidade”, explicou.

    Foto:Reprodução/ @shuhu.yawanawa

    A pergunta natural que se faz nesse momento é se a ayahuasca não poderia ser considerada uma droga. Que o uni age por um efeito psicoativo, é óbvio, assim como o café ou o álcool, por exemplo.

    Em 2006, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas retirou definitivamente a ayahuasca da lista de drogas alucinógenas (da qual já estava excluída em caráter provisório desde 1987) e, em 2010, o governo brasileiro regulamentou seu uso para fins religiosos.

    Tais medidas deram amparo legal à prática ancestral de inúmeros índios da Amazônia e de segmentos religiosos consolidados há muitas décadas, como o Santo Daime, cujas origens remontam ao início do século XX, e a União do Vegetal, fundada em 1961.

    A cura do mundo

    Foto: Reprodução/Yawanawa.org

    Os Yawanawá acreditam que, ao ingerir ayahuasca, seja possível visitar a realidade do domínio aquático das cobras, onde está guardada toda a verdade sobre a cura do mundo – talvez aquela citada pela música de Caetano.

    Mas não se engane: a bebida jamais transformará a realidade física por si só. É preciso estar atento para entender quem se é e, então, estar pronto para curar a si mesmo. Talvez esse seja o grande ensinamento.

    Com a revitalização da sua essência, a música atua como verdadeira orquestradora dos costumes Yawanawá. Os nawa, que antes foram motivo de muitas dores para o povo, hoje, dão a eles alegria ao mostrarem empenho em aprender seus cantos ancestrais e a expandir sua cultura para além das fronteiras onde o primeiro homem da Criação de seu povo cantou “Kanarô”.

    Quem sabe do outro lado, naquela pontinha verde que ele mal podia enxergar, éramos nós quem recebíamos as mensagens de saudade, amor e paz eterna carregadas pela arara amarela. Um chamado para sua família desconhecida, que também era parte dele, a começar uma grande revolução: a sua própria.

    Foto: Reprodução/ Yawanawá.org

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